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Construção da Autonomia

Muito tem se falado em “autonomia”, ou postura autônoma. Não por acaso: um mundo cada vez mais complexo requer indivíduos capazes de tomar decisões e agir em situações cada vez mais diversas (e adversas). O mercado de trabalho vem acusando, com veemência cada vez maior, a lacuna que as gerações recém chegadas à vida adulta têm carregado consigo no quesito autonomia, dada a aparente incapacidade atribuída a alguns jovens profissionais de lançar um olhar crítico sobre uma determinada situação, identificando os problemas e, para (muito) além disso, buscando respostas e implementando soluções para eles. No âmbito político do país, a ausência da chamada “autonomia moral” – que diz respeito à capacidade de um indivíduo posicionar-se ativa e criticamente diante de
situações diversas, usando de critérios internamente construídos para discernir entre o certo e o errado – desdobra-se nos mais bizarros e escandalosos episódios de corrupção e disputas egocêntricas por poder.

Estes são alguns dos cenários nos quais a ausência de uma postura autônoma faz suas inconsistências, o que torna este um tema de grande urgência no debate educacional, e sucita os questionamentos: O que é a autonomia propriamente dita? Como promover seu desenvolvimento? Com qual idade a criança já é capaz de ser autônoma? Por ser recente e devido à sua grande difusão, essa discussão também dá margem para o surgimento de alguns mitos, como o de que o desenvolvimento de uma postura autônoma pressupõe a criação de um ambiente sem normas, com o qual a criança possa interagir livremente, criando suas próprias regras. É preciso cautela ao lidar com essa máxima de maneira tão radical.

Mas afinal, o que é autonomia?

O termo autonomia relaciona-se à capacidade de auto governo. No âmbito individual, ser autônomo significa, portanto, ser capaz de tirar conclusões, criar percepções e realizar escolhas usando de criticidade e de critérios internamente consolidados. Ao termo autonomia, opõe-se o conceito de heteronomia, que está ligado às noções externamente estabelecidas sobre normas de conduta e regras. A heteronomia diz respeito ao código de conduta praticado em uma sociedade, cujas regras são reproduzidas e obedecidas sem que haja necessariamente uma construção ativa por parte daqueles que a estão cumprindo.

A autonomia: uma construção processual

Ao nascer, um bebê não é dotado de percepção sobre o que é certo ou errado. Ao longo de sua primeira infância (fase de seus primeiros anos de vida), quando começa a desenvolver sua estrutura cognitiva, a criança dá início à construção da heteronomia, isto é, a noção da existência da norma e a interiorização de algumas regras. Essa interiorização, contudo, ainda se dá de forma acrítica e passiva, isto é, ela toma conhecimento de atitudes consideradas positivas e negativas e passa a reproduzi-las. Mais adiante, com o seu amadurecimento cognitivo, ela começa a desenvolver sua autonomia, tornando-se apta a significar os princípios das regras e compreendendo seu sentido. Esta habilidade se complexifica com o passar do tempo e o desenvolvimento do raciocínio lógico do indivíduo, que vai construindo competências que o capacitam a ressignificar as regras, a criar as suas próprias e, consequentemente, a tomar decisões baseado em critérios subjetivos. O desenvolvimento da autonomia é, portanto, algo processual, e deve ter a regra como princípio fundamental. A maneira como as regras são trabalhadas desde a primeira infância, deve, contudo, ser cuidadosamente conduzida. Isso porque um indivíduo que não tem sua autonomia devidamente desenvolvida pode ser considerado um indivíduo heterônomo, o quer dizer que ele (ou ela) não é capaz de governar suas próprias escolhas e age segundo princípios que lhe são impostos por terceiros. Isso pode resultar de um processo de trabalho com regras embasado na coerção, na mera punição ao erro e recompensa ao acerto durante a infância. Ora, por nascer desprovida de referências quanto ao que é correto e incorreto, a criança necessita de se enxergar imersa em um mundo social onde as condutas de todos devem ter em conta o bem-estar geral. É a partir dessa premissa que as normas devem ser trabalhadas: de maneira a estimular que a criança reflita a respeito dos princípios de cada uma
delas, compreendendo suas razões e construindo internamente seu próprio discernimento a respeito de cada uma.

E como isso se dá na prática?

Na prática, tanto em casa quanto na escola, as regras devem ser construídas coletivamente, em um processo ativo de participação e cooperação entre crianças e adultos. Estabelecer um código composto por comandos criados a partir das reflexões realizadas pelos pequenos (os conhecidos “combinados”) é uma boa estratégia.  Promover um ambiente dialógico e explorar todas as oportunidades de reflexão acerca da convivência, do respeito ao próximo e dos limites também é um importante alicerce do trabalho educativo na primeira infância.

Isso significa que a criança não deve ser repreendida em relação aos seus erros?

Mais do que repreender, o adulto deve levar a criança a refletir acerca de sua própria atitude, avaliando a si própria e realizando projeções futuras. As sanções aos comportamentos devem ser estipuladas como uma consequência de uma escolha realizada pela criança, e não com uma conotação punitiva. Se a criança escolhe bater em um par (seja um irmão, um amigo ou um colega), por exemplo, um possível desdobramento disso é que sua companhia não seja desejada pelo grupo, não porque está sendo castigada, mas por se tratar de uma atitude agressiva, que não vai ao encontro da premissa do bem-estar coletivo. Logo, ela deve ser levada a perceber que o não cumprimento daquela regra
acarreta consequências de acordo com os efeitos que produz.

E como ficam as punições?

A simples punição ou recompensa a um determinado comportamento de uma criança, sem que haja sua sensibilização para a situação produzida (seja ela positiva ou negativa) é um estímulo à postura heterônoma, isto é, ela determinará seu modus operandi futuro a partir de fatores externos: o adesivo ou brinquedo que ela vai receber, a bronca que vai levar. Por outro lado, quando o trabalho de base leva em conta a construção de sentido em torno de um comando ou regra, tem-se o claro estímulo ao pensamento autônomo.